29 novembro 2005

REFLEXÕES

Paradoxos desta vida
As vezes, nos raros momentos de silêncio que hoje em dia esta vida nos põe à disposição, fico a imaginar, a divagar num itinerário labiríntico sobre aspectos que inquietam meu coração.
Um dos aspectos sobre o qual me indago é o lado paradoxal desta vida. Não se trata do tipo de paradoxo cantado por alguém e que diz: si hoje bô nascê, um dia bô tá morrê/bô ta corrê d’pôs bô tá pará. Não se trata disso. São sim, aspectos que o próprio Homem cria e comanda sob a sua reputação de único ser racional.
Nascemos, crescemos e nesse processo de crescimento, onde estamos submetidos a um aprendizado constante, ouvimos e retemos ensinamentos vários, muitas vezes teorias do senso comum que, com o amadurecer das consciências, vamos anuindo ou refutando.
Assim ouvia, e oiço, dizer que cada um conforme trabalha assim recolhe. Será isto verdade? Não sei, mas vejamos os casos de dois homens, ambos com o mesmo nome – João.
O primeiro madruga as cinco horas, abaixo de dificuldades ferve um gole de café e vai labutar debaixo de um sol ardente, com enxada, pá, picareta…Sob esse eterno sacrifício constrói estradas, levanta diques, varre as ruas, esvazia os contentores nauseabundos, enfim…
O segundo levanta muito mais tarde, veste-se a rigor, com roupa lavada e passada por uma empregada doméstica. Tira da garagem um luxuoso automóvel e caminha em direcção ao serviço. No escritório tem uma multi-media de onde consegue chegar aos quatro cantos do mundo. A mensalidade deste João não atrasa um dia sequer e é desafogada. Já a mensalidade (se assim se pode chama-la) do primeiro João demora meio ano a chegar e só dá para liquidar dívidas contraídas na compra de alguns produtos de primeiríssima necessidade.
A vida destas duas criaturas desenrola em dois patamares completamente diferentes. Só há de comum entre eles o facto de ambos terem o mesmo nome, embora o do segundo seja precedido de um sonorizado Sr.! Desta forma a vida desses dois homens foi-se prolongando cheia de diferenças até que chegou a morte. E será que isso lhes colocou no mesmo nível, algo que não pôde acontecer ao longo da sua existência na Terra? Meu Deus, nem a sepultura lhes aproximou. É certo que ambos foram metidos numa cova de sete palmos e cobertos de terra, mas de comum apenas isso. Quando o segundo morreu mobilizou uma multidão que veio de lenços ao punho. As pessoas trouxeram ramalhetes de flores de todos os feitios; o jazigo foi enfeitado com lindas coroas. O outro João, o primeiro, morreu e lá se foi a enterrar. Quatro pessoas assegurando o caixão, comprado com dinheiro que o finado tinha religiosamente guardado para quando chegasse esse dia. O cortejo traz pouco mais de duas dezenas de pessoas, incluindo familiares, dentre os quais 10 filhos, e alguns vizinhos. A cova, situada há alguns metros do mausoléu do outro João (o com Sr.), ficou despida de flores e nem uma cruz decente conseguiu. E esteja ciente, mendigo, porque mais alguns anos vais ter que dar lugar a outro João como tu, enquanto teu, agora vizinho, também João (mas com Sr.), com o sepulcro comprado e feito de betão, jaze livre de perturbações.

Quando paro e penso na história destes dois Joãos recordo aquele aforismo que muitas vezes oiço da minha avó: “Cada um conforme trabalha, assim recolhe!” Hum, sem querer estar a pôr em causa a tua sabedoria nonagenária, te pergunto avó: porque será que os Joãos sem Sr. trabalham, trabalham, sem fins-de-semana nem ferias, suportando o sol ardente e, afinal, não têm um abrigo decente, comem mal, são os menos respeitados (desprezados mesmo) e o que recolhem no final do mês nem dá para um jantar fora dos Joãos com Sr. !!? E já reparaste, avó, que os Joãos mais respeitados (os com Sr.) nem sempre são os mais respeitáveis, enquanto que os outros (os sem Sr.) geralmente são honestos e humildes? Isto chama-se paradoxo, minha avó.
BN